A beleza natural da internet é uma farsa

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joyce nunes artificios
@j0ynunes: acompanho desde o início do blog dela, o Gostei e Agora?, quando ainda era morena, cacheada e de olhos escuros. Muito autoconsciente e sempre se questiona sobre padrões e transformações no Instagram

Faz uns bons 10 anos que consumo conteúdo de beleza na internet. Primeiro foram os blogs, depois passei a escrever sobre o assunto no meu trabalho de jornalista (cobrindo semanas de moda, pesquisando tendências, fazendo matérias de como usar). Saí das redações de impresso em 2009, deixei o jornal e as revistas femininas, mas nunca deixei de acompanhar esse mundo da maquiagem – porque gosto mesmo e acho maquiagem algo muito divertido.

Ali por 2010, essas mulheres que escreviam sobre beleza (e moda) online, eram as blogueiras: pessoas comuns que davam opiniões sinceras sobre produtos, que se vestiam com marcas acessíveis e fotografavam seus looks com uma câmera ruim. Elas eram reais, eram honestas, eram possíveis e por isso se tornaram um fenômeno de audiência.

Niina Secrets em 2011, uma garota como qualquer outra falando sobre maquiagem na internet
Niina Secrets em 2011, uma garota como qualquer outra falando sobre maquiagem na internet

Foi nesse tempo que elas começaram a dizer, e a gente começou a finalmente entender que as capas de revista não eram de verdade, que aquelas mulheres não existiam, eram montadas no Photoshop, da pele lisa e sem poros ao corpo todo modelado no Liquify.

As blogueiras cresceram e apareceram vendendo a imagem da honestidade, da credibilidade, incorruptíveis, com uma opinião que não está à venda. Mas bastou o Instagram se popularizar pra que toda aquela realidade passasse a ser fabricada, dos cenários aos looks, que não eram mais do dia, não eram nem pra serem usados em situações reais.

Até quando surgiu o Snapchat, diziam que lá era a rede onde as blogueiras apareciam sem maquiagem, sem montação. A vida perfeita já não parecia ser mais tão atraente assim. Até que o Instagram incorporou os Stories, e a vida como ela não é passou a ser também postada ali.

Thaynara OG, de plebeia a rainha do Snapchat. Foto: Foto: Léo Jordan
Thaynara OG, de plebeia a rainha do Snapchat. Foto: Léo Jordan

O que quero dizer nesta contextualização é que, ao longo do tempo, as blogueiras, símbolo de mulheres reais, foram se tornando tão fabricadas quanto as celebs das capas de revista – mas 1) muita gente ainda acredita que elas são naturais e 2) os seguidores que sabem que elas não são tão perfeitas assim cobram delas essa perfeição, não só no visual como nas atitudes.

Vender transparência e não entregar transparência, verdade, é muito desonesto. Vide a Boca Rosa, que fazia todo um discurso de que emagreceu com alimentação “da terra” e exercício, mas soltou sem querer que fez mesmo foi uma lipo. Mas hoje não quero falar sobre o corpo padrão. Quero falar sobre o rosto padrão.

boca rosa comidinhas da terra

De uns tempos pra cá tenho ficado incomodada com uma frase que está na boca das influencers: “pra ficar mais natural”. O padrão de beleza, está claro pra todo mundo, não é mais ditado pelas novelas, mas pelo Instagram e suas celebridades (Tumblr também). De lá as tendências são replicadas em tutoriais no YouTube, as brasileiras copiam as gringas até na iluminação dos vídeos, e assim temos uma produção em série no mundo inteiro de gente com a mesma cara.

O problema não é tanto ter a mesma cara (quer dizer, eu acho meio sem graça todo mundo ter a mesma cara, mas quem quiser ter tenha), o problema é fazer uma maquiagem completíssima, escondendo tudo o que o rosto naturalmente tem, mas dizendo, a cada passo, que ele precisa ficar “mais natural”:

  • base tem cobertura alta, mas espalhe com a esponjinha, para ficar “mais natural”
  • sobrancelha está preenchida com sombra, penteada e fixada com gel e contornada com corretivo pra ficar “perfeita”, mas esfume tudo pra deixar “mais natural”
  • boca é contornada para além da linha dos lábios, pra ficar mais carnuda, mas não pode ser muito, pra ficar “mais natural”
  • Os cílios são postiços, porque fazem muita diferença na maquiagem, mas o modelo tal é o melhor, porque é “mais natural”
  • iluminador, que ia nas têmporas pra dar um glow natural, agora vai sobre os lábios, no queixo, na ponte e na ponta do nariz (o glow natural mesmo tá todo mundo escondendo com bases supermatte e pó)
  • contorno também não pode faltar, pra deixar o rosto mais magro, mas esfume bem, que é pra ficar mais natural

Usar maquiagem não é errado, não é antifeminista. Usar maquiagem é massa. O problema está no discurso de querer parecer natural, quando o padrão do natural na internet não é natural de jeito nenhum! Pouquíssimas pessoas acordam com a pele perfeita, sem manchas, sem veias aparentes, sem ruguinhas, sem marcas de expressão.

britney-spears 2018
Esta é Britney Spears em 2018

Aí o problema vai se agravando quando esse padrão do parecer natural ultrapassa a maquiagem. Procedimentos estéticos como botox, preenchimento de lábios, pra não falar em cirurgias, como bichectomia e rinoplastia, são usados o tempo todo pelas mulheres (e homens) mais lindas da internet, mas quase ninguém fala que tem a pele lisinha ou a boca mais bonita por causa disso. Dizem que é maquiagem, que são as máscaras de tratamento, a rotina de cuidados com a pele, quando, na verdade, é tudo obra do dermatologista e do cirurgião.

(Nátaly Neri em um vídeo OBRIGATÓRIO sobre ficar uma semana sem usar maquiagem e a dificuldade que foi pra ela entender que a cara dela sem maquiagem é que é a cara dela de verdade, não é a cara de uma pessoa doente nem abatida)

Que padrão é esse, gente? De onde ele vem? Como e por que ele é estabelecido? Será mesmo que essas influencers estão felizes precisando seguir todas essas regras? E mais, será que elas teriam a mesma quantidade de seguidores e fãs se não estivessem dentro desse padrão Instagram?

Não tenho todas as respostas, mas tenho algumas. A primeira é que não, os seguidores não seriam os mesmos, seriam muito menos. As celebridades ainda ditam os padrões (Kim Kardashian e família, por exemplo). Imagine agora uma cadeia que vai executando e desejando cada ordem do exército do padrãozinho: superceleb – superinfluencer – influencer – microinfluencer – influencers locais – seguidores.

face-tune

(Vou citar aqui também a utilização de Facetune e apps de retoque também, porque, gente, na boa, nunca “fica natural”. Não façam, por favor. Quando a gente faz isso, tá compactuando com essa busca louca pra atender um padrão e tá se afastando de quem a gente é de verdade, se agarrando muito mais em quem a gente gostaria de ser – e, se a gente gostaria de verdade de ser diferente, se for algo que puder ser mudado de verdade, como uma gordurinha aqui e ali, é melhor mudar de verdade. E se não for algo que possa ser mudado na vida real, vamos nos amar e nos mostrar, porque vamos viver para sempre com esse corpinho que nós temos)

Christina Aguilera jurando estar sem maquiagem e sem retoques aos 38 anos
Christina Aguilera jurando estar sem maquiagem e sem retoques aos 38 anos

Quando algo sai do script com alguma dessas influencers, elas prontamente são cobradas pelos seguidores, que deveriam estar ali porque gostam do conteúdo produzido e compartilhado, porque gostam das pessoas. Mas nem todo mundo é assim.

Outro dia vi uma YouTuber com mais de 1 milhão e 700 mil inscritos mostrando no Instagram que estava indo ao dentista. E escreveu: “Agora vocês não vão mais dizer pra eu parar de gastar dinheiro com maquiagem e ir fazer clareamento dentário”. Nem os dentes podem mais ter o tom natural, porque precisam ser extremamente brancos!

dentes brancos ross

O pior disso tudo é que não foi a mídia, não foi o sistema, foram outras mulheres, seguidoras, que acompanhavam o trabalho dela, mas exigiam que ela, que sempre foi meio fora do padrão, entrasse na caixinha da beleza perfeita da internet.

Que mundo maluco é esse? A gente deveria estar junta e unida pra ser livre, pra aceitar a outra como ela quiser ser. Se amar não é fácil, fugir dos padrões, ter uma superautoestima, ser desconstruída, nada disso é fácil. Mas é muito mais fácil ser tranquila com relação a si mesma e às outras mulheres do que ficar se cobrando e cobrando delas um padrão de beleza que não é real.

(Luiza maravilhosa falando sobre como passou de viciada em maquiagem e hater de si mesma pra usar maquiagem de maneira mais livre e como a mudança dela incomodou os seguidores, que passaram a dizer que ela parecia triste e/ou abatida quando ela estava sem base e corretivo)

Então tá tudo bem se você não tiver a sobrancelha com design, se você tiver ruguinhas, sardas. Tá tudo bem se você quiser fazer uma maquiagem completa pra sair de casa. Você pode. Você pode usar apps de retoque. Pode ir pra academia conquistar o corpo dos seus sonhos. Só para um pouco pra pensar por que você precisa fugir de quem você naturalmente é. Porque se ser natural fosse ruim, ninguém estaria investindo tanto tempo e dinheiro pra tentar encontrar um natural-padrão-a-ser-seguido.

Nunca esqueça: o exército do padrãozinho já está lotado.

Exercito do padraozinho

Alinne Rodrigues

4 comentários

  1. O melhor texto que li em meses!Queria imprimir e espalhar pelo mundo!É tão difícil se aceitar naturalmente quando até o “natural” entra em uma espécie de padrão maluco e é algo que está tipo em todo lugar que olhamos durante o dia! É um caminho difícil o de se aceitar…qndo de todos os lados os padrões querem te prender!Sei la,esse texto disse tudo que eu precisava ler.

  2. Eita gatinha! Que emoção! Entro pra ler um texto que me interessa e dou de cara com uma foto minha com uma descrição tão carinhosa! ❤️
    Faço das suas palavras as minhas! Artifícios e maquiagens estão aí pra serem usadas e é uma delícia brincar com a imagem, o problema é virar refém delas e até querer esconder o seu uso, né?

    Ps: meu cabelinho não enrola mais… tá muito curto e ele só ondulava/cacheava a partir comprimento. Estou momentaneamente lisa natural, hahaha. Espero que um dia volte a enrolar, quando crescer hehe! Mas meu olho continua castanho e meu cabelo também nasce dessa cor hehe!

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